Livro Nossa Senhora de Fátima - William Thomas Walsh



A meia milha ao sul de Fátima, margeando a estrada sinuosa, pavimentada de pedras chatas e ovais, tão estreita que mal comporta uma junta de bois, fica a vila de Aljustrel. As casas, telheiros e pátios, em frente a um alto muro de pedras que vai fazendo alas à rua estreita, parecem se destacar como contas de formas e tamanhos bizarros. As janelas, raras e pequenas, recebem as rajadas frias do noroeste que vem do Atlântico, cortando as montanhas com a mesma... da soalheira abrasadora do verão. Mais adiante surgem moradias atarracadas, de um só pavimento, com suas telhas vermelhas e paredes de pedras caiadas, de aparência discreta e velada, como se cada uma escondesse enorme segredo. Se for dia de semana, os homens estão no campo; mas, entrando e saindo dos interiores sombrios, apressam-se mulheres baixas, bastante bonitas, crianças de olhos lindos, dentes brilhantes, e - devido ao peso que habitualmente levam à cabeça - de pode ereto e movimentos graciosos, mesmo sob o peso de doze a quinze litros de água carregada em bilhas de barro. 

Os pés descalços, empoeirados mas bem feitos, não parecem sentir as asperezas das pedras pontiagudas, nem tão pouco as faces risonhas se mostram descontentes com as moscas e outros insetos que zumbem, no verão, em torno dos pa­tios e estrebarias, onde ficam os animais. Um burro zurra, um cão ladra, um galo canta, uma junta de bois se arrasta pesadamente pela estrada afora ... O ar está saturado de odores, entre os quais se pode distinguir o dos pinheiros agrestes e dos arbustos sempre verdes, o das hortelãs selvagens e das ovelhas, das cabras e das galinhas; e a tudo dominando, o cheiro acre e úmido, não de todo desagradável, que o solo de Portugal desprende em toda parte. Não há nada aqui que se assemelhe às tão faladas pescarias de Lisboa ou Porto, mas os rubros campos são atraentes e o vestuário dessa gente é impregnado de aroma. Eis Aljustrel, onde Lúcia mora, agora a famosa Irmã Maria das Dores, nasceu em 22 de março de 1907. 

O casebre onde ela cresceu se assemelha muito àquele onde os viajantes encontram hoje essa mulher paciente e cortês, de olhos escuros e sinceros, que é a sua irmã mais velha, Maria dos Anjos. A sala de estar é rusticamente mobiliada com uma mesa, uma cadeira, duas velhas arcas de madeira, onde se guardam roupas e comidas; quadros piedosos enfeitam a parede nua. Uma brecha no telhado, bem sobre o orifício do teto de madeira, permite a ,entrada de um raio de sol, que nos torna possível perceber melhor, num pequeno quarto adjacente, o velho tear que pertenceu à mãe de Lúcia. Um tapete inacabado de lã branca, vermelha e azul, ainda emaranhado em cordas, Levanta uma nuvem de pó ao menor contato. Na cozinha sombria há uma lareira espaçosa, na qual alguns gravetos queimam lentamente, mesmo durante o verão; nas outras estações a cozinha é iluminada por muitas velas, presas a uma prancha pendente do teto de madeira, enegrecido pela fumaça de muitos invernos. 

Há somente um quarto de dormir. Uma cama de ferro, com cobertas asseadas de cores berrantes, toma a metade do quarto, encostando-se em três paredes sem adornos. Um vaso de plantas repousa no pei toril da janela minúscula; um outro, com flores cor-de-rosa, está no chão. Maria dos Anjos explica que a cama pertencia, anteriormente, à casa de seus pais, e nela nasceu Lúcia. Lúcia era a caçula, e Maria, a mais velha dos sete filhos de Antônio dos Santos, o Abóbora, pequeno agricultor e criador de carneiros, que possuía algumas terras em vários lugares da Serra do Aire. Era um homem de aparência agradável, olhos escuros e apaixonados, que preferia o convívio dos amigos à assistência à Missa, e apreciava mas o vinho que o trabalho. Sua esposa, Maria Rosa, era católica devota, um tanto severa, baixa, corpulenta e forte; seus traços viris revelavam condescendência grave, e só em raras ocasiões se distendiam num sorriso maternal. As futilidades não interessavam a Maria Rosa. Nunca teve tempo para isso. Foi essa progenitora de forte têmpera que veio à mente de Lúcia, quando esta, ao escrever suas memórias, começou a evocar as primeiras reminiscências. Poderia lembrar-se de como subia a esses braços rijos o como, desde então, tinha, consciência de sua personalidade e de suas próprias ações. Uma das primeiras coisas de que se lembrava era o ter aprendido a «Ave-Maria» dos lábios maternos. 

«Ave, Maria, cheia de graça O Senhor é convosco  Bendita sois vós entre as mulheres» Esta antiga oração, que começa com as palavras de um anjo, é bela em todas as línguas. Mas, em português, as sílabas parecem adquirir um ritmo peculiar e inesquecível: « Ave, Maria, cheia de graça. O Senhor é convosco, Bendita sois vós entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus! Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém ». Lúcia tem também outras lembranças, talvez menos edificantes. Não poucas vezes, por exemplo, armou impetuosas brigas, nas quais uma ou outra das quatro irmãs mais velhas, sempre vitoriosas, a deixava gritando por terra, até que a mãe a levantasse e acariciasse. Mal poderia Lúcia lembrar-se do tempo em que não esteve sob o atrativo da dança, que se apodera mais dos camponeses do que de quaisquer outros seres humanos. Isto era especialmente verdade com referência às duas irmãs já moças, Maria dos Anjos e Teresa. E ocasiões não faltavam em Aljustrel. Nos d ias santos era sempre certo haver baile em algum lugar, - festa do Sagrado Coração de Jesus e de Santo Antônio, em junho, de Nossa Senhora dos Prazeres, em outubro, c, naturalmente, pelo Natal e pela Páscoa. Além disso, Maria Rosa era muito requestada, já como festeira, já como cozinheira de notória habilidade, onde quer que houvesse um casamento, numa daquelas doze aldeolas disseminadas pelas cercanias da Serra. E as filhas mais velhas raramente deixavam de acompanhá-la. 

O problema de como dispor do bebê, em tais ocasiões, era facilmente resolvido. Se bem que fosse quase incapaz de andar, e menos ainda de dançar, Lúcia era ataviada com uma saia bordada, um cinto brilhante, um lindo lenço, cujas pontas eram amarradas atrás, e, o que mais lhe agradava, um elegante chapeuzinho, cintilante de contas douradas e de penas brilhantes. Era então carregada nos fortes braços maternos através do labirinto das estradas estreitas, que ziguezagueavam pelos campos pedregosos, entre altos muros de pedras; e quando principiava a dança, depois do jantar, resolutamente a colocavam, como medida de segurança, contra os pisões, sobre uma dessas arcas de madeira que constituem a parte mais importante do mobiliário de cada cozinha ou sala de estar. Dessa altura, a frágil menina podia apreciar as faces ruborizadas e os pés que sapateavam ligeiros e ouvir os sons fascinantes que partiam d·e uma guitarra ou de uma harmônica. Dentro em pouco, sem dúvida, ela começava a dormir e se encolhia contra a parede até a hora de ir para casa, quando - e isso na maioria das vezes já os primeiros raios da aurora clareavam o céu, lá pelas bandas do Oriente; pois, para as irmãs de Lúcia, nunca bastavam as valsas, que eram o furor da época. 

Na residência dos Abóboras, também havia muitas festas. "o verão, os rapazes e moças reuniam-se debaixo de uma grande figueira, no pátio, e, durante o inverno, num barracão junto à casa. Em tais ocasiões, Maria Rosa sentava-se à soleira da porta do pequeno quarto que dava para o pátio, de onde podia ver tudo o que se passava dentro e fora de casa. Algumas vezes trazia um livro aberto ao colo, outras, dava uma prosa com algum parente ou amigo enquanto os jovens dançavam ou troçavam. «Ela foi sempre muito sisuda, relata a própria Lúcia, «e todos acatavam o que ela dizia como se fosse palavra da Sagrada Escritura; e o que ela dizia devia ser obedecido em nossa casa. Alguns dos visitantes costumavam dizer-lhe que ela era melhor que todas as filhas juntas. Talvez fosse exagero, mas isso não lhe desagradava. Maria Rosa era em Aljustrel uma das poucas pessoas que sabiam ler. «Não sei que gosto tem essa gente de andar vagando de casa em casa costuma v a dizer. Quantos deuses há? » « Que é o homem ? » « Por que Deus nos criou?» «Que devemos fazer para nos salvar?» e assim por diante, percorrendo a lista que todas as crianças estudam. Pareceu a Lúcia e à mãe que na prova ela não tinha ido mal. Entretanto, depois de pequena reflexão, decidiu o bom padre . que a menina era muito criança, e seria melhor esperar mais um ano. Era, justamente, a véspera da Primeira Comunhão. Elas não esperavam por tal golpe. Meio aturdidas pelo desaponta ­ mento, saíram da sacristia, sentaram-se, cabisbaixas nos bancos da Igreja e ficaram pensando ... Lúcia começou a soluçar. Aconteceu, porém, que um missionário de Lisboa, Padre Cruz, tinha pregado um tríduo na Paróquia de Santo Antônio, em preparação à Primeira Comunhão e estava ajudando o Padre Pena a ouvir as numerosas confissões. Como atravessasse a Igreja, viu o desespero da menina e parou para indagar o que havia. Ouviu-lhe a história, fez perguntas do Catecismo e levou-a novamente ao Prior, na sacristia. «Esta menina sabe a doutrina melhor que muitos outros que foram admitidos», disse. « Mas tem apenas seis anos» objetou o P. Pena. O sacerdote insistiu. Era homem bondoso e  humilde, mas resoluto. Para maior alegria de Lúcia, o Prior finalmente cedeu. 

Agora ela precisava ir confessar-se para podar oferecer o coração sem manchas ao Hóspede Divino que viria no dia seguinte. Foi no Confessionário móvel, colocado perto da porta da sacristia, que o Padre Cruz ouviu a sua primeira confissão. Que graça imensa. O famoso sacerdote era tido como santo por muita gente em Portugal, c dificilmente falava, mesmo com uma criança, sem comunicar um pouco de seu amor de Deus. Era um homem alto, de seus cinquenta anos, um pouco curvado, devido aos estudos e às austeridades. Quando Lúcia acabou de contar suas faltas, ouviu-o dizer em voz baixa : «Minha filha, sua alma é o templo do Espírito Santo. Conserve·a sempre pura, para que ele aí possa exercer sua ação divina ''· Lúcia prometeu e rezar,ou o ato de contrição. Pediu a Nossa Senhora que a ajudasse a receber dignamente, no dia seguinte, o Corpo c o Sangue de seu Filho. Levantou-se, então, e foi ter com a mãe . .Maria fiosa parecia embaraçada, fora de si e as mulheres, em volta dela, não se sabe por quê, riam-se e cochichavam. Mas Lúcia não prestava atenção nisso; estava somente pensando no que lhe dissera o padre ... Ajoelhou-se contra a grade diante da estátua de Nossa Senhora dos Prazeres, olhou para o semblante triste, de olhos perscrutadores, e disse-lhe: «Guardai, por favor, meu pobre coração para Nosso Senhor«E pareceu-me , escreveu muitos anos mais tarde, « que Ela me sorria e com um gesto bondoso e o olhar cheio de ternura, disse-me que sim"· Maria Rosa estava à sua espera. «Então, não sabes que a confissão é um segredo e deve ser feita em voz baixa?, perguntou quando voltavam pela estrada de Aljustrel . Lúcia baixou a cabeça. «Todo o mundo te ouviu"· Silêncio. «Ouviram tudo exceto a última coisa que disseste ao padre"· Lúcia fechou-se resolutamente num mutismo obstinado. «Que foi a última coisa que lhe disseste?" Nada de resposta! Maria fiosa insistiu durante todo o percurso, mas nunca soube do segredo. Lúcia foi sempre uma criança reservada. Assim que percebia alguém procurando fazê-la falar, refugiava-se num silêncio taciturno que se tornava até exasperante. Naquela noite, suas irmãs trabalharam até tarde para poder aprontá-la para o grande acontecimento de sua vida. O vestido novo, todo branco, precisava ser ajustado. Uma grinalda de flores entrelaçadas devia coroar-lhe os cabelos negros. E, quando, finalmente, a mandaram para a cama, foi incapaz de dormir, pensando em tudo o que havia acontecido e no que iria acontecer. E se ninguém a acordasse, na manhã seguinte, para a Missa. A todo instante se levantava para que horas eram. Parecia que a madrugada nunca chega a Por fim, ei-la que surge. Maria vem chamá-la e, sem dúvida, recomendar lhe, como era de uso, que não bebesse e não comesse nada, porque era preciso ficar em jejum antes da Sagrada Comunhão. 

Deu os últimos retoques no vestido branco e na grinalda. Apresentou, então, Lúcia aos pais, dizendo-lhes que lhes devia pedir perdão pelas suas faltas, beijar-lhes as mãos e pedir-lhes a bênção. A menina obedeceu e eles a abençoaram. «E vê lá se não te esqueces de pedir a Nossa Senhora que te faça uma santa», acrescentou Maria Rosa. E a família partiu para a Igreja. Quando Lúcia já não conseguia mais acompanhar os outros, a mãe tomou-a nos braços fortes, porque já era tarde, e carregou-a assim o resto do caminho. Não era necessária tanta pressa. Alguns dos padres convidados que vinham de lugares distantes, ainda não haviam chegado e a Missa cantada demorou algum tempo para começar. Isto deu oportunidade à Lúcia de ajoelhar-se mais uma vez diante da estátua de Nossa Senhora dos Prazeres e desempenhar-se da recomendação da mãe. «Fazei que eu seja uma santa» murmurou. «Por favor, peça a Nosso Senhor que me faça uma santa» Pareceu-lhe ainda que o semblante se distendeu num sorriso de assentimento_ Ela não era a única a relatar essa experiência, diante de uma estátua ou uma gravura; Santa Teresinha do Menino Jesus, entre tantos, experimentou o mesmo. Lúcia não deu muita importância ao que os teólogos consideram como critério mínimo de veracidade. « Eu não sei se os fatos que escrevi sobre a minha Primeira Comunhão correspondem à realidade ou não passam de uma ilusão infantil», escreveu modestamente, quando seu Bispo lhe ordenou que confiasse ao papel suas experiências espirituais. « Tudo que sei é que eles tiveram muita influência, unindo-me a Deus por toda a minha vida ». Ficou tanto tempo contemplando a imagem sorridente da Virgem, que suas irmãs tiveram de ir buscá­ la. 

A procissão já se estava formando. Lúcia era a mais jovem e a menorzinha das crianças que se dispunham em quatro longas filas, duas de meninas, duas de meninos; foi a primeira a comungar. Quando o sacerdote depositou a Hóstia branca sobre a língua, sentiu, segundo suas próprias palavras, « uma serenidade e uma paz inalteráveis ». Durante todo o resto da Missa, ficou repetindo em seu coração « Senhor, tornai-mo uma santa! Conservai meu coração sempre puro e somente para vós ». E ouviu distintamente que Ele lhe dizia ao coração : «A graça que hoje te concedo, permanecerá viva em tua alma, produzindo frutos do vida eterna ». Passava de meio-dia quando acabou a Missa cantada, porque o sermão fora longo e as crianças levaram muito tempo para a renovação dos votos do batismo. Quando, finalmente, debandaram, afluíram para fora da Igreja, dispersando-se em grupos, conversando em voz alta, algumas já mastigando bocados de pão que as mães haviam trazido. Lúcia permaneceu ajoelhada, envolta na luz azul e rosa que irradiavam os vitrais. A mãe ficou alarmada, receando que a menina desmaiasse de fome e levou-a embora. Mas quando chegaram a casa, a criança mal pôde comer. Estava fortalecida com o Pão dos Anjos, como se nenhum outro alimento a pudesse atrair e satisfazer jamais. E, durante muito tempo, bem além do que os outros pudessem ter observado, ela parecia absorta, como que deslumbrada.
Título do original americano: OUR LADY OF FATIMA
William Thomas Walsh

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